sábado, 4 de abril de 2009

O cavalheiro negro do czar

O etíope Abram Petrovich Gannibal, que chegou à Rússia como escravo e virou governador, foi o primeiro intelectual negro da Europa.

''Dispensado! Após 57 anos de serviço leal, sem razão ou recompensa!'', queixava-se o recém-ex-militar em uma carta pra Catarina, a Grande, soberana do Império Russo. Como reparação, ele exigia uma promoção ao posto de marechal e pensão vitalícia. Seu pedido, no entanto, foi ignorado, e o jeito foi aceitar a aposentadoria forçada na sua casa de campo. Tudo bem: encerrar a vida como aristocrata rural era bem agradável. E, no caso do negro Abram Petrovich Gannibal, vindo da África pra ser escravo na Rússia, lendário.

Nascido em 1696 na Etiópia, aos sete anos o menino foi capturado e despachado para o sultão de Constantinopla, e logo revendido à corte de S. Petersburgo - era moda entre os monarcas colecionar crianças exóticas. Inteligente, o menino conquistou o czar Pedro, o Grande, que arranjou sua alforria e se tornou seu padrinho - daí o sobrenome imperial, Petrovich.

Quando fez 20 anos, o cavalheiro negro foi enviado a Paris para concluir seus estudos e, nas horas vagas, espionar um pouco. Russo, negro e nobre, o paradoxo ambulante logo se enturmou com uma galerinha alternativa da época, Diderot, Montesquieu e Voltaire eram seus amigos e o chamavam de ''estrela negra do iluminismo''. Seu biógrafo, Hugh Barnes, crava: Abram foi o primeiro intelectual negro da Europa.

Formado em belas-artes e na arte da guerra, fez 'estágio' em um conflito entre França e Espanha, de onde saiu capitão. A fama de estrategista lhe inspirou um novo sobrenome, Gannibal - em russo, Aníbal, um general africano que assombrava a Europa 2 mil anos antes.

A volta para a Rússia, em 1722, foi cheia de glórias - breves. Morto o padrinho, Abram recebeu uma missão supimpa: deixar nos trinques várias fortalezas na Sibéria. Foram 4 congelantes anos até que seus dons como engenheiro militar chamassem atenção e o tirassem do exílio.

Reintegrado à aristocracia, Gannibal ascendeu na hierarquia política, militar e diplomática. Assim como o Otello de Shakespeare, o ''mouro de Petersburgo'' havia feito ao Estado alguns serviços, e eles sabiam disso. Tanto que lhe deram, em 1741, um belo sítio na província de Pskov, com milhares de pinheiros e centenas de servos. O escravo africano havia se tornado um nobre russo dono de escravos.

Após apelar e perder com a czarina Catarina, Gannibal terminou seus dias isolado no campo. Apesar da vida singular, na Rússia ele é só um antepassado de alguém mais famoso: bisavô de Alexandre Pushkin, pai da literatura russa.

Texto de Emiliano Urbim, retirado da Superinteressante do mês de Abril.

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